Ensino Público, Gratuito e de Qualidade: a
luta dos estudantes da Famesf na concretização de um sonho
52 anos de
histórias do Diretório Acadêmico Livre de Agronomia
Texto: Sheila Feitosa
Fotos: Sheila Feitosa e Arquivo
Pessoal
Núcleo de Assessoria de Comunicação
do DTCS/UNEB
Caracterizada
por promover no Brasil um regime de repressão, censura e perseguição a Ditadura
Militar deixou, nas décadas de 1960, 70 e 80 fortes marcas na política e na
sociedade brasileira e foi responsável por alavancar uma mobilização dos
estudantes que trouxeram para a população o debate sobre questões importantes
como a reforma universitária e a luta contra a privatização do ensino superior
no país.
Dois
anos antes de toda essa efervescência política, em 1962, estudantes do interior
do Vale do São Francisco lutavam por melhorias no ensino superior. Estes
discentes da cidade de Juazeiro, no interior da Bahia, reivindicavam questões
para a melhoria da estrutura física e do ensino da Faculdade de Agronomia do
Médio São Francisco (FAMESF) atual Departamento de Tecnologia e Ciências
Sociais (DTCS).
Desse
entusiasmo surgiu, nesse mesmo ano, o Diretório Acadêmico Manoel Novaes (DA),
composto por dez alunos da primeira turma do curso de Agronomia. O DA era
responsável por representar os discentes na instituição e nos movimentos
estudantis. As primeiras atividades do diretório estão registradas na primeira
ata de reuniões, guardada até hoje na sala do Diretório Acadêmico. A ata de
capa marrom, folhas amareladas e com leves avarias provocadas pelo tempo, conta
com assinaturas da primeira diretoria que teve início com o seguinte escrito:
“Aos dez
dias do mês de abril de mil novecentos e sessenta e dois, às vinte horas, no
edifício sede da Sociedade Beneficente dos Artífices Juazeirenses, primeiro
andar, na sala em que se ministrou as aulas teóricas da nossa Faculdade de Agronomia
do Médio São Francisco (FAMESF), realizou-se a primeira sessão ordinária para assembleia geral para eleições do primeiro mandatário do
Diretório Acadêmico Manoel Novaes, órgão
representativo da instituição de ensino superior”.
Hylânia Duarte, primeira mulher integrar a diretoria do DA |
A
ex-aluna da Famesf, Hylânia Duarte, que em 1983 integrou o quadro docente do
curso de Agronomia, lembrou o período em que atuou como secretária no Diretório.
Ela relatou que a primeira eleição foi realizada de forma direta e o presidente
escolhido foi o estudante Nelson Cerqueira Muniz. Nessa época, as reuniões eram
realizadas no Clube Sociedade Artífices Juazeirense, local onde funcionava a
Escola de Agronomia desde 1960.
PRIMEIRA CONQUISTA- Em 31 de março de 1964 teve início o
Regime Militar no país que alavancou muitos protestos e reivindicações contrárias
as ações dos militares. A ditadura não intimidou os estudantes da Famesf que,
mesmo sob pressão, se reuniam para discutir possíveis mudanças na faculdade.
Em
um desses encontros, o presidente do DA, Jeremias Cauby, e um professor da
Escola de Agronomia foram presos, acusados de subversão. “Isso ocorreu depois
que um olheiro do governo militar fotografou o encontro e enviou as fotos para
a capital Salvador. Logo após, os dois foram presos e levados para uma fazenda,
próximo à cidade de Terra Nova, em Pernambuco”, relatou Hylânia
A
faculdade ainda estava nascendo e haviam alguns problemas que aos poucos foram
sendo superados. De acordo com Hylânia, uma das principais pautas de
reivindicações do Diretório era a aquisição de um veículo que os transportassem
para outras cidades, possibilitando a realização de aulas práticas fora de
Juazeiro. E as reivindicações deram frutos. Em 1965 foi feita a aquisição do
primeiro ônibus da faculdade, batizado pelos alunos de "O Bororó",
que levou os estudantes da primeira turma a uma viagem à cidade de Montevidéu,
no Uruguai.
ENSINO PÚBLICO, GRATUITO
E DE QUALIDADE - A
ação estudantil no país era representada por algumas organizações como: os
Diretórios Centrais Estudantis (DCEs), as Uniões Estaduais de Estudantes (UEEs)
e a União Nacional dos Estudantes (UNE), que foram reprimidas pelos militares
por protagonizarem protestos contra a privatização do ensino superior no Brasil
e a favor da democracia. Em juazeiro, o movimento estudantil, liderado pelos
discentes da Famesf, segundo relatos dos ex-alunos da época, parecia não temer as ações do regime militar e permaneceram
lutando por melhorias na Instituição.
Na
faculdade, o Diretório Acadêmico Manoel Novaes estava passando por algumas
mudanças. As primeiras foram na nomenclatura e na forma como eram eleitos os
presidentes. O ex- aluno da turma de 1979 e ex-presidente do DA, Antônio
Fernando Dantas, contou que a diretoria, até o ano anterior, era escolhida de
forma indireta. Depois foram realizadas eleições diretas e passou a se chamar
Diretório Acadêmico Livre de Agronomia (D.A.L.A).
Os
estudantes fizeram uma série de reivindicações em prol da melhoria da
Instituição
. Segundo Fernando, algumas delas foram: a criação de um restaurante
universitário; a construção do prédio da residência estudantil; concurso
público para os professores; livros novos para a antiga biblioteca, que ficava
nas salas em baixo do prédio do Auditório Principal do DTCS; e a construção do
novo prédio da biblioteca.
O ex presidente do DA Antônio Fernando Dantas com a segunda edição do jornal Tiririca |
Outra
pauta também discutida pelos alunos foi a reformulação do currículo do curso de
Agronomia. “Começamos a procurar a grade curricular das faculdades de todo o
país. Comparamos com o nosso e discutíamos o que o curso precisava”, relatou
com entusiasmo o ex-aluno Fernando.
Ele
também contou que houve um período em que se pensava em trazer, para a região,
um curso de Licenciatura em Agropecuária, ofertado pelo Centro de Ensino e
Tecnologia da Bahia (CETEBA), na cidade de Ilhéus. O problema, segundo
Fernando, era a não gratuidade do curso e havia o receio de que o ensino na
Famesf fosse privatizado. “Fizemos uma mobilização e pregávamos as seguintes
bandeiras: ensino público, gratuito e de qualidade. Após os nossos protestos o
curso veio para a região de graça”, explicou aos risos Fernando.
GREVE ESTUDANTIL - Na década de 1980 os estudantes reivindicavam
a construção do prédio da residência estudantil. O ex-aluno da Famesf Hugo
Pereira de Jesus militou junto ao D.AL.A. O ex-aluno contou que os estudantes
com o apoio do Diretório e realizaram uma greve que durou um mês. O movimento
foi considerado pelos estudantes como a primeira greve universitária no
interior da Bahia, no período da ditadura militar. Para que o movimento tivesse
repercussão, os discentes levaram suas pautas para Secretaria de Educação do
Estado.
Ex-aluno Hugo Pereira relembra os momentos e aventuras vividas no DA no período em que foi vice-presidente |
“Enfatizamos
na capital a questão da qualidade do ensino e a necessidade que a faculdade
tinha de melhorias. Voltamos para Juazeiro e começamos a pensar formas de
divulgar a greve para ganhar opinião pública. Assim a população da cidade
passou a conhecer os problemas que existiam dentro da Famesf”, relatou o
ex-aluno.
Dois
veículos de comunicação da região foram importantes, segundo Hugo, para a
divulgação da greve dos estudantes: a Rádio Juazeiro e a Emissora Rural, da
vizinha cidade de Petrolina, Pernambuco. “Recorríamos muito à imprensa. Divulgávamos,
nas duas rádios, as nossas reivindicações, os eventos culturais e foi uma das
coisas mais interessantes que, mesmo em período de censura, conseguimos fazer”,
contou.
EVENTOS CULTURAIS – Com a ideia de atrair o público juazeirense
à Famesf, os estudantes realizavam, no Auditório Principal do Campus III,
apresentações teatrais e festivais de música com artistas locais. Chegaram a
escrever duas peças inspiradas no teatro de rua de Augusto Boal. Um dos
episódios que Hugo considerou marcante foi o show com o cantor de axé Carlos
Pita. Ele contou que o cantor e a banda perderam o ônibus em Salvador e para
chegar a tempo no show, pegaram um táxi da capital para Juazeiro. “Foram dez horas de viagem. O auditório
estava lotado. Pagamos o taxi de ida e volta, o cachê combinado ao cantor e
ainda tivemos um bom lucro. Foi o primeiro grande evento que fizemos”,
disse.
JORNAL TIRIRRICA- Ainda na década de 1980, o D.A.L.A produziu
um periódico, vendido a um valor simbólico, que teria em seu conteúdo
discussões sobre agricultura alternativa, qualidade do ensino, piadas, cordéis
e charges com desenhos feitos pelos próprios discentes. Segundo o ex-aluno
Antônio Fernando Dantas a ideia era que jornal se tornasse uma ponte entre os
estudantes novatos e veteranos e que estes pudessem conhecer era discutido no
DA.
Ao
folear as páginas do periódico, Fernando relembrou que o primeiro exemplar do
jornal saiu propositalmente sem título. Foi realizado um concurso onde os
estudantes da Famesf pudessem escolher o nome do informativo e Tiririca foi o
título vencedor dado por um estudante chamado Genaro, cujo sobrenome não foi
divulgado. O nome foi comparado a uma planta espontânea que é difícil de ser
erradicada e o vencedor recebeu como prêmio a assinatura gratuita do jornal.
As
impressões do Tiririca eram realizadas no mimeógrafo da diocese de Juazeiro e
circulou na Famesf até a década de 1990.
DOM JOSÉ RODRIGUES - O bispo da diocese de Juazeiro Dom
José Rodrigues teve importância fundamental nos movimentos realizados pelos
alunos da Famesf. Nessa mesma década os estudantes realizaram um protesto na
cidade a favor da permanência, no país, do presidente da UNE, Javier Alfaya,
que corria o risco de ser deportado por possuir nacionalidade espanhola. Os
estudantes participaram da mobilização realizando uma greve de fome junto com
alunos secundaristas dos bairros Santo Antônio e Maringá. O protesto foi
realizado em frente a catedral da cidade, no período de Corpus Christi e durou
48 horas.
Marilene Simone Rocha atuou na criação do grupo de agricultura alternativa |
AGRICULTURA ALTERNATIVA
- Outra bandeira
defendida pelo D.A.L.A foi a discussão sobre a agricultura alternativa que
levou, segundo a ex-aluna e militante do diretório, Marilene Simões da Rocha, a
criação de um grupo que debatia sobre o uso de agrotóxicos e fertilizantes nos
alimentos. Os experimentos foram realizados na Famesf e no bairro Country Club, em juazeiro. “A partir
desse contato chegamos até o pessoal da Empresa Brasileira de Pesquisa
Agropecuária (Embrapa) para realizar a análise de solo. E foi assim que depois tivemos
a oportunidade de fazer estágio nessa empresa”, relatou.
NOVOS RESIDENTES- Em 1985 a ditadura militar estaria
chegando ao final. Na Famesf uma nova turma de alunos passou a circular nos
corredores da instituição e o desejo por melhorias continuava. As pautas não
divergiam das turmas anteriores: universidade pública e gratuita, melhores
condições para as aulas práticas e reforma da residência estudantil.
Os
ex-alunos José Welito Mendes dos Santos, conhecido como Zumbi, e Carlos Neiva
foram presidente e vice, respectivamente, do D.A.L.A. Durante o curso, os dois
alunos foram residentes na Famesf. Zumbi foi eleito presidente no período em
que ainda era fera na Universidade. Segundo o ex-aluno, a reforma da residência
foi realizada após protestos. “Foi uma luta muito forte para que fosse feita a
reforma. Nosso objetivo era ter um ambiente confortável para que o aluno
tivesse um bom rendimento em sala de aula”, explicou.
Ex- aluno da Famesf Carlos Neiva relembrou o período de retomada do jornal Tiririca |
Para
Carlos Neiva, viver nas residências foi um momento de enriquecimento de vida e
profissional. “Nas residências viviam 14
alunos de diferentes cidades, com idades de 18 a 21 anos. Passamos a conviver com a diversidade de pensar de cada
um, com o jeito de ser, a individualidade e assumimos responsabilidades. Foi
uma experiência importante para a nossa formação”, contou o ex-aluno.
D.A.LA HOJE- Atualmente a diretoria do D.A.L.A é
composta por dez alunos do curso de Engenharia Agronômica do DTCS da
Universidade do Estado da Bahia (UNEB).
O Departamento abriu espaço para novos cursos e novos Diretórios surgiram. De
acordo com o presidente do D.A.L.A, Ary Diógenes Paiva, o Diretório tem como
principais propostas atuar junto com os Centros Acadêmicos dos cursos de
Direito e Engenharia de Bioprocessos e Biotecnologia, além de pensar formas de
integração dos feras, discutir reformas no calendário acadêmico e questões
relacionadas a recursos para a compra de livros para a biblioteca.
A
principal conquista do Centro Acadêmico do Curso de Direito, com o apoio dos
demais Diretórios e a direção do DTCS, este ano, foi a assinatura do termo de
mobilidade discente na Uneb, onde estudantes das Instituições de Ensino
Superior poderão cursar componentes curriculares em qualquer Instituição da
região do Vale do São Francisco.
E A LUTA CONTINUA – O embrião de todo o histórico da
Famesf surgiu do entusiasmo de estudantes que faziam o terceiro ano em uma
escola técnica em Juazeiro, provocados pelos próprios questionamentos de pensar
como seriam seus destinos após o término do curso e somado ao apoio de
autoridades locais, professores, profissionais da área de agrárias, além da
população Juazeirense. Após a reforma das Universidades que ocorreu em 1997, a
nomenclatura Famesf mudou para DTCS.
A
força estudantil junto com os diferentes diretores que atuaram na Famesf e no
DTCS ajudaram a concretizar e mudar o cenário do Departamento. Hoje a
Instituição conta com os cursos de Engenharia Agronômica, Engenharia de Bioprocessos
e Biotecnologia e Direito; 37 projetos de
pesquisa e extensão; 14 laboratórios; novo prédio para residência estudantil;
novo prédio onde funciona o curso de Engenharia de Bioprocessos; melhores
condições para a prática em campo, mestrado com concentração na área de
Horticultura Irrigada e o mestrado em Ecologia Humana com a primeira turma
realizada em Juazeiro já no semestre letivo de 2016, além de outras reformas
que estão sendo realizadas para o benefício de todo o corpo discente.
E
o sonho dos alunos que lutaram e acreditaram nas mudanças, no período da Famesf
e no DTCS se tornou realidade. As gerações que passaram por essa Instituição
refletem os mesmos desejos e anseios. A satisfação, orgulho e entusiasmo desses
alunos, que participaram desses momentos marcantes podem ser percebidos em cada
momento em que essas histórias são relatadas.
E a luta continua...
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